Em 2003 assisti a um daqueles filmes a que dou lugar de destaque na mítica (para mim, claro está) prateleira dos "filmes da minha vida". Já o revi algumas vezes (não digo muitas pois acho que nunca serão demais) em momentos distintos destes últimos sete anos de percurso, só e em diversas companhias e com diferentes estados de espírito. Em cada um desses visionamentos vislumbrei algum pormenor que me tinha escapado anteriormente, em cada um deles descobri algo mais sobre alguma particularidade do momento histórico retratado, em todos eles me deslumbrei com a crueza com que Wolfgang Becker se utiliza de uma história pouco verosível de amor de um filho pela sua mãe "casada com a Pátria"para introduzir contemporâneas personagens reais num mundo imaginário que apenas recria o jogo de mentiras do próprio regime que manipulava factos reais para manter todo um país na esperança de um futuro grandioso que nunca chegou, ou poderá ainda estar por vir, a acreditar no fim irónico que Becker nos propociona com a estrela vermelha que se reconstrói.
Passada a fase da crítica cinematográfica, jamais isenta mas que nunca consigo evitar (talvez por isso restem poucas pessoas que acedam a revisitar o filme comigo), chegamos ao que hoje interessa para a Trova. A tal história de Amor do filho pela sua mãe, que atrás na crítica disse ser pouco verosível, mas que agora devidamente contextualizada (ou descontextualizada, nunca sei) pretendo que seja trave mestra das linhas seguintes.
Kathrin era fervorosa defendora do regime, quase como que devota dessa espécie de religião política que prometia o "Céu" da igualdade entre todos os que se mantinham encarneiradamente afastados de todos os perigos do desenvolvimento e do pensamento livre. Via e respirava pelos olhos e pulmões do partido único. Nada mais lhe fazia sentido que não a obediência e a manutenção da esperança pela "salvação" prometida por Honecker e companhia. Assim nasceu, assim casou e enviuvou, tentou educar os seus filhos. Durante um dos rotineiros desfiles comemorativos da sua "Fé" sofreu um ataque cardíaco. Ficou hospitalizada em coma durante os meses necessários a que o "seu" regime caísse com um muro que lhe dividia a cidade e a apartava de todos os males. Ela não o viu, não o sabia. O filho Alexander com receio de que o choque com a realidade após o despertar do coma pudesse der fatal à mãe recriou no apartamento da família uma verdade que já não existia. Fêz com que tudo se mantivesse tal e qual como a sua mãe acreditava e gostava de viver. Com o muro firme dos dois lados da Brandenburger Tor, com o noticiário da televisão estatal, com as habituais conservas na despensa e um mundo livre de Coca-Cola. Por amor à sua mãe criou todo um enredo, um filme dentro do filme (ups, resvalei para a crítica), apenas para a fazer feliz e para se sentir feliz ao vê-la feliz, mesmo que artificialmente e ele a saber que tudo era artificial, mas desde que ela não sofresse, ele tudo faria para manter a devida ordem nas coisas (tal como o anterior regime fazia por ele). Arregimentou colaborações, engendrou estratagemas, mentiu a dizer a verdade e disse verdades a mentir. Por Amor e pela Felicidade da mãe tudo lhe parecia justificar-se e justificado.
Mas o Mundo não voltou atrás na sua vil mudança evolutiva. E obviamente um dia a mãe confrontou-se com um Lénine que voava por cima da sua cabeça para longe da sua vista, quiçá da sua vida. Mas o confronto com a realidade, embora a intenção fosse evitá-lo a todo o custo aconteceu de forma gradual. E ela aguentou. Sobreviveu. Alexander teve sucesso no seu insucesso de manter real uma mentira, cheia de Amor.
Nas nossas vidas apressadas quantas vezes somos Alexander? Quantas vezes decidimos "chutar" para a frente a realidade, iludidos mesmo que por Amor, que ela não nos vai voar diante dos olhos? Quantas vezes criamos e recriamos mundos para tentar fazer e ser felizes? Damos passos apressados em direcção a um sucesso sonhado e querido?
Talvez a maior das ironias desta Trova (que já vai longa e sem sentido definido, dirão) seja que o ensinamento para evitar os desmandos do coração e até mesmo da razão foi dado pelo próprio Vladimir Ilitch Lénine em 1921 quando implementou a sua Nova Política Económica : "às vezes há que dar um passo atrás para depois poder dar dois em frente".
Faz sentido? Talvez não.
Fiquem bem, à Luz da Lua.
segunda-feira, 25 de outubro de 2010
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